Eu demorei muito tempo para escrever sobre esse livro pois é um livro que me toca e me ensinou bastante. Me foi apresentado em um momento conturbado da minha vida e me fez perceber novas formas de entender as conexões interpessoais e o processo de ancestralidade que é muito mais amplo que eu imaginava.
O Espírito da Intimidade foi, na verdade ditado, por Sobonfu Somé, foi extraído de suas entrevistas e oficinas, como dito no prefácio esse escrito reflete a tradição oral da autora. Sobonfu é de Burkina Fasso e seu nome tem o significado de: “A Mantenedora do Ritual”, ela e seu marido Malidoma ensinavam no ocidente sobre a sabedoria ancestral de sua tribo Dagara. Foi professora e escritora, escreveu muito sobre espiritualidade e tradições de sua cultura trazendo reflexões importantes para as diferentes formas de entender e estar no mundo.
Entre suas produções temos os livros: O Espírito de Intimidade: Antigos ensinamentos sobre as formas de relacionamento . New York, NY: Quill, 2002; Casa do Espírito de Boas Vindas: Antigos Ensinamentos Africanos para Celebrar as Crianças e a Comunidade . Novato, CA: New World Library; Falling Out of Grace: Meditações sobre a perda, cura e sabedoria . El Sobrante, CA: North Bay Books. Arms, S. (2002); e Sabedoria das Mulheres do Coração da África . Louisville, CO: Sounds True, 2004. Nem todos estão traduzidos em português. A autora deixou esse mundo no ano de 2017.
O livro O Espírito da Intimidade escrito por Sobonfu traz muito da forma com que sua cominidade Dagara, que segundo ela é encontrada principalmente em Gana, Costa do Marfim e Togo, nas divisas entre esses países, no interior, local chamado de Burkina Fasso pelos colonos. O povo Dagara foi dividido pelo poder colonial que não reconheciam as tribos enquanto nações legítimas.
Apresentando sua comunidade Dagara, Sobonfu explica que vivem ligados à terra e à natureza, em aldeia. A natureza faz parte da relação de construção da comunidade e das relações entre as pessoas. Relata que os habitantes das diferentes aldeias se conhecem proximamente e que as pessoas não são contadas, elas simplesmente convivem e sabem quem são umas às outras. As ruas das aldeias dos Dagara não são nomeadas, há um portão que liga a estrada principal a capital de Burkina Fasso: Uagaduru. Quanto à vegetação do local, relata, que é chamada de savana. A fonte de água potável de Dano (maior aldeia Dagara) é coletada através de córregos e poços cavados para suprir a população com água durante a seca. Há uma ordem para coleta da água: famílias com crianças, mulheres grávidas e idosos possuem prioridade. Relata ainda que a vida na aldeia acontece, de fato, ao ar livre. As construções possuem um propósito específico: dormir, fazer rituais e armazenar alimentos.
A economia, diz Sobonfu, é agrária de subsistência, a produção de alimentos é realizada conforme a necessidade de consumo próprio. Tendo a troca como forma de negociação, assim como a troca das conchas cauri, que são utilizadas como moedas, adivinhação e cura. Há ainda a possibilidade de venda e utilização da moeda usada por Burkina Fasso e outros países colonizados pela França, chamada Franco CFA. Ambos sistemas de troca e negociação funcionam concomitantemente. A caça era mais comum antes do processo de tomada de terras realizado pelo governo dos países em que a comunidade Dagara se insere, a relação com a terra é diferente da do ocidente que regulamentou impostos sobre ela. A terra para os Dagara não tem dono, ela é do espírito e as pessoas que vivem nela a estão utilizando naquele momento, emprestada.
A estrutura familiar e de liderança, explica Sobonfu, parte da ideia de cuidado. Não há um responsável ou chefe. Os mais velhos supervisionam a aldeia porém sem uma perspectiva de dominação ou de poder sobre os demais.
O poder sobre outros é algo considerado perigoso, e segundo a autora relata, qualquer tipo de poder deve ser utilizado com cuidado. A família é entendida como algo amplo, em que todos e todas são responsáveis pelas crianças e por sua criação. Relata ainda que a cultura ocidental tem impactado aos jovens da aldeia, com a crescente ida dos mais jovens para as cidades e em contato com a cultura individualista do ocidente.
Os anciãos, explica Sobonfu, são os que tomam as decisões em situações urgentes, de conflitos, etc. Há um conselho de dez anciãos que gerenciam os rituais e outros assuntos da aldeia e são selecionados de acordo com forças elementares do universo: terra, água, mineral, fogo e natureza. São representados cada um destes elementos por um homem e uma mulher.
Quanto aos elementos, diz que: “O elemento terra é responsável por nosso sentido de identidade, nosso é no chão e nossa habilidade de apoiar e nutrir uns aos outros. Água é paz, concentração, sabedoria e reconciliação. Mineral ajuda-nos a lembrar nosso propósito e nos dá os meios para nos comunica e compreender que os outros estão dizendo. Fogo relaciona-se com sonha, manter nossa conexão com o ser e os ancestrais e manter nossa visão viva.
Natureza nos ajuda a ser o nosso verdadeiro ser, a passar por importantes mudanças e situações que ameaçam a vida. Traz mágica e riso” (p. 23).
Agora que já sabemos de que comunidade a autora está falando e de como a mesma se organiza, chegamos ao que Sobonfu chama de “Uma canção do espírito”, explica que há uma dimensão espiritual em todos relacionamentos, independentemente da origem, que as relações não são movidas por algo individual, mas sim espiritual. O espirito, explica, tem o papel de guia e de orientação. Em suas palavras:
“Quando povos tribais falam de espírito, estão, basicamente, referindo-se à força vital que há em tudo. Podemos, por exemplo, citar o espírito de um animal, ou seja, a força vital daquele animal que nos ajuda a realizar o propósito de nossa vida e a manter nossa conexão com o mundo espiritual” (p. 26).
Ou seja, essa força vital que há em cada um de nós possui um propósito e outros espíritos, ou forças vitais, podem contribuir para que alcancemos nossos propósitos, se assim permitirmos.
Os ancestrais, explica a autora, são chamados de espíritos também e possuem um poder de direcionamento e contribuição para realização do bem em nossas vidas. Os ancestrais não estão fixados à ideia de familiaridade, até porque a família para os Dagara é compreendida de uma outra forma, em que todos estão interligados de alguma forma.
“Existem muitos espíritos diferentes, na África. Cada um deles tem um papel específico, ou uma característica específica que pode nos ajudar. O espírito da terra, pro exemplo, é responsável por nossa identidade, nosso conforto, nossa alimentação, e assim por diante. Existe ainda o espírito da natureza, o espírito do rio, o espírito da montanha, o espírito dos animais, da água e dos ancestrais. Espírito está em toda parte” (p. 27).
Falando especificamente de relacionamentos, a autora relata que é necessário não deixar o ego e o controle dominarem a relação, a união deve ser do espírito ou da energia vital para que seja verdadeiramente amorosa. Diferente do amor romântico, a conexão entre o espírito é mais profunda e não segue padrões de comportamento, deve vir do íntimo. A união de dois espíritos é o que a autora chama de: espírito da intimidade que deve ser mantido vivo.
A comunidade tem um papel fundamental e central para os Dagara, segundo Sobonfu, o objetivo da comunidade é fazer com que cada pessoa seja ouvida e contribua com seus dons. A falta de comunidade prejudica e fragiliza o indivíduo, relata. Afirma ainda que o relacionamento não pode ser a comunidade de cada um, pois uma comunidade não pode ser composta de apenas duas pessoas, uma pessoa não consegue suprir todas as necessidades de afeto familiar, de amizade da outra. É necessário uma comunidade para dar apoio e nutrir as diferentes relações. As amizades, a família, pessoas próximas, podem ser no ocidente o que a autora chama de comunidade pois a visão de outras pessoas que confiamos sobre algo ou situação, pode ampliar nossos horizontes e nos fazer repensar. Diz que: “Manter tudo no privado geralmente mata um relacionamento (…) Sempre haverá problemas nos relacionamentos. Deixar o medo de compartilhá-los ameaçar seu futuro é ridículo” (p. 40–41).
A comunidade Dagara entende que somos limitados enquanto seres humanos e nem todos poderemos dar aos outros o que eles necessitam, daí a importância da comunidade. Se cada um doa de si o que consegue, ninguém fica sobrecarregado. Assim funciona em todos os tipos de relação, que são compartilhadas. A criação das crianças perpassa por toda comunidade, não apenas de quem as gerou.
Seus fundamentos de comunidade são:
“espírito, crianças, anciãos, responsabilidade, generosidade, confiança, ancestrais e ritual”
(p. 46)
Sobonfu conta que todas as manhãs as mulheres de Dagara se reúnem para falar sobre as coisas da vida a dois, conta que a relação de gênero é entendida também de maneira diferente. Que a energia feminina e masculina estão dentro de todas as pessoas e que o genital não definem a natureza sexual das pessoas. Há rituais para harmonizar as energias femininas e masculinas, observem que Sobonfu fala de energia e não de gênero. A formação das identidades se desenvolve também através da comunidade, mulheres trabalham com mulheres e homens trabalham com homens, assim também ocorrem certos rituais. Relata que é importante que seja criado: “um ambiente no qual os sexos apreciem e respeitem um ao outro”.
A construção do gênero debatida no ocidente não se aplica a comunidade Dagara, não podemos observar outra sociedade a partir das bases e do olhar colonial pois são processos e entendimentos de convívio e relações diferentes. Nesta comunidade as mulheres realizam trabalhos com mulheres e reforçam seus vínculos com as mesmas, assim como os homens realizam esse processo, para que quando ambos se unam possam ter um convívio mais harmônico, sob o olhar não colonial esta não é uma prática sexista segundo a autora.
Sobonfu explica que em todos relacionamentos os rituais são importantes e que existem rituais diversos. Um ritual segundo a autora é uma cerimônia em que o dito espírito é o guia, possuem elementos que possibilitam a conexão do ser, da comunidade e com as forças naturais. O ritual visa proporcionar um contato mais íntimo com o espírito e com a natureza de forma a encontrar o equilíbrio. Todo ritual deve haver um propósito e cada um deles é único, não há uma receita que se possa aplicar.
Quanto às crianças, diz que todos nós pertencemos à comunidade e ao espírito, que cada um escolhe seu propósito de vida antes mesmo do nascimento. Os anciãos realizam rituais antes mesmo das crianças nasceram e contribuem para que a mesma possa cumprir seu propósito em vida. Cada um nasce ligado a um elemento, sendo eles: natureza, água, fogo, mineral e terra que estão associados a numerologia dos anos. Já enquanto crianças se é aprendido questões sobre intimidade, sexualidade e rituais. Há um processo de iniciação para cada pessoa, sendo diferentes entre homens e mulheres, importante dizer que a autora pontua o processo de diálogo entre as crianças e os adultos que é bastante forte segundo ela.
O ciclo menstrual feminino é valioso nessa comunidade, parte de uma energia de cura. Após a iniciação de cada um, essa pessoa segue seu propósito de vida, sempre guiada pelos anciões, ancestrais e buscando forças em rituais.
Sobre o casamento, a autora explica que se casar é a união de duas almas, uma comunhão não apenas física mas também ancestral. Quando alguém da aldeia se casa todos os casais são convidados a renovar seus votos e assim seu amor, o casamento não é particular ou individual. Os anciões unem as pessoas da aldeia a partir de afinidades e com os conselhos dos ancestrais e dos espíritos. Casamentos arranjados são comuns, porém cada indivíduo tem autonomia para ser sincero e acatar ou não o que lhes é proposto, explica Sobonfu com exemplos de sua própria vida. A poligamia é permitida apenas com a permissão da esposa.
O povo Dagara entende o corpo enquanto um objeto sagrado, logo sua ligação coma sexualidade também é diferente. Sobonfu afirma que “quando duas pessoas compartilham uma vida íntima equilibrada e espiritual, elas têm o poder de aumentar a energia curadora de tudo à sua volta” (p. 95–100).
A intimidade está no espaço de quem a possui e mantida dessa forma, em um espaço sagrado e sem expectadores, tem uma tendência a ser mais duradoura. Ratando da sexualidade como algo sagrado. No livro a autora explica que o amor romântico não existe e pode ser prejudicial, as relações não devem se pautar apenas no romance, o romance existe de uma forma diferente, o entendimento parte de uma outra premissa. Cada um se doa o quanto quer e/ou consegue, para além da relação de amizade e parceria cultivadas em uma relação pautadas sempre na verdade.
“O crescimento de um relacionamento é alimentado por constante entrega, concessão e cura” (p. 129).
Sobonfu explica que na comunidade Dagara não existe a palavra “divórcio”, principalmente porque os relacionamentos são construídos de uma maneira diferente, as relações se desenvolvem no coletivo, com o envolvimento da comunidade, a ideia de posse e propriedade privada não é fundamental para essa comunidade, na verdade os valores são coletivos e não individuais.
As palavras “gay” e “lésbica” também não existem, a orientação sexual não define a personalidade de ninguém parte desta comunidade. Homossexuais são guardiões na comunidade Dagara, sendo eles responsáveis por toda a aldeia.
Sobonfu termina seu livro nos fazendo um convite, em suas palavras:
Para quem estiver interessado na intimidade espiritual: ouça mais os ancestrais, o espírito, as árvores, os animais. Concentre-se no ritual. Ouça todas as forças que vêm e falam conosco e que, normalmente ignoramos. (…) As pessoas talvez digam que você é estranho, que está lendo a respeito de pessoas estranhas. Mas, sabe, talvez seja hora de celebrar o estranho. Barka: significa “obrigada”. (Somè, 145–150).
Fonte: Uma Preta Ensinou
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